sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A COMIDA E A POESIA


O significado da comida ultrapassa o simples ato de alimentar-se. São muitas as tradições que consideram a hora da refeição como semi-sagrada, de silêncio, compostura e de severidade. Manda-se respeitar a mesa e, no interior, não se comia trazendo armas, chapéu na cabeça ou então sem camisa. Comer junto é aliar-se: a palavra “companheiro” vem do latim “cum panis”, de quem compartilha o pão.

A culinária é mágica, saborosa e diversificada. Cada um tem seus pratos favoritos, preparados de acordo com suas preferências, transmitidas através das experiências vividas e conforme nos trazem sensações de prazer.

Quem me conhece sabe que amo cozinhar, mas é estranho o fato de como alimentos me lembram pessoas! É como se fosse uma mescla de todas as outras memórias, tendo como elo a comida. Poético? Nem tanto, mas tem um toque de ironia... Por exemplo, toda vez em que corto uma cebola vem na memória meu amigo César que odeia a “bundinha” da cebola, quando corto um tomate tenho recordações do Alexandre que sempre dizia para descascar o tomate pois é na casca que estão os agrotóxicos, ao usar bacon me lembro do Saulo, por sua preferência, utilizando brócolis penso na Susana, ao fazer molho de macarrão trago lembranças de todos os amigos da infância, pois foi o primeiro prato que aprendi a fazer nas reuniões da galera, e ao preparar maionese com galinhada recordo-me de todos meus aniversários e da inesquecível festa de despedida da empresa em que trabalhava. O que faz lembrar que nunca realmente escrevi sobre a minha festa de despedida.

Amar e se alimentar são magia em comum, existem e se complementam, não há como amar e não se alimentar ou o inverso. Se realmente somos aquilo que comemos, também comemos da mesma forma que amamos. E a vida ensina a poesia que existe para viver um grande amor, conforme nos ensina o poeta:

Para Viver Um Grande Amor

Vinicius de Moraes


Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.

Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.

É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.


Texto extraído do livro "Para Viver Um Grande Amor", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1984, pág. 130.

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